sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Hóstia


Para matar um grande amor (Jamil Snege)


Motivo de fraqueza maior me leva a reproduzir este texto, que eu já havia publicado no blog em 04/2007.

Muito se louvou a arte do encontro, mas poucos louvaram a arte do adeus. No entanto, não há gesto tão profundamente humano quanto uma despedida. É aquele momento em que renunciamos não apenas à pessoa amada, mas a nós mesmos, ao mundo, ao universo inteiro. O amor relativiza; a renúncia absolutiza. E não há sentimento mais absoluto do que a solidão em que somos lançados após o derradeiro abraço, o último e desesperado entrelaçar de mãos. Arrisco mesmo a dizer: só os amores verdadeiros se acabam. Os que sobrevivem, incrustados no hábito de se amar, podem durar uma vida inteira e podem até ser chamados de amor mas nunca foram ou serão um amor verdadeiro. Falta-lhes exatamente o dom da finitude, abrupta e intempestiva. Qualidade só encontrável nos amores que infundem medo e temor de destruição. Não se vive o amor; sofre-se o amor. Sofre-se a ansiedade de não poder retê-lo, porque nossas cordas afetivas são muito frágeis para mantê-lo retido e domesticado como um animal de estimação. Ele é xucro e bravio e nos despedaça a cada embate e por fim se extingue e nos extingue com ele. Aponta numa única direção: o rompimento. Pois só conseguiremos suportá-lo se ocultarmos de nossos sentidos o objeto dessa desvairada paixão.
Mas não se pense que esse é um gesto de covardia. O grande amor exige isso. O rompimento é sua parte complementar. Uma maneira astuciosa de suspender a tragédia, ditada pelo instinto de sobrevivência de cada um dos amantes. Morrer um pouco para se continuar vivendo. E poder usufruir daquele momento mágico, embebido de ternura, em que a voz falseia, as mãos se abandonam e cada qual vê o outro se afastar como se através de uma cortina líquida ou de um vitral embaçado.
Há todo um imaginário sobre os adeuses e as separações, construído pela literatura e pelo cinema. O cenário pode ser uma estação de trem, um aeroporto (remember Casablanca), um entroncamento rodoviário. Pode ser uma praça ou uma praia deserta. Falésias ou ruínas de uma cidade perdida. Pode estar garoando ou nevando, mas vento é imprescindível. As nuvens devem revolutear no horizonte, como a sugerir a volubilidade do destino. Os cabelos da amada, longos e escuros, fustigam de leve seus lábios entreabertos. Há sutis crispações, um discreto arfar de seios. E os olhos, ah!, os olhos... A visão é o último e o mais frágil dos sentidos que ainda nos une ao que acabamos de perder.
Uma grande dor, uma solidão cósmica, um imenso sentimento de desterro. Que se curam algum tempo depois com um amor vulgar, desses feitos para durar uma vida inteira...

Jamil Snege (1939-2003), escritor curitibano, um cara fantástico, de sensibilidade e percepção incríveis. O texto acima é uma das coisas mais lindas que já li.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Sangra sono


acordo! dou de cara
com o lado noturno da cama
viciado em vazio

mas, e o sobressalto?
de estranho isso tem o que?

afinal, naquela época
era pegar ou largar

eu peguei
e você largou...


RAUL POUGH

sábado, 24 de outubro de 2009

E-ma il


----- Original Message -----
From: Antirreformista
To: Reformista
Sent: Saturday, October 24, 2009 3:18 PM
Subject: O Sequestro do Trema


não, não me interessa

a garota de ipan ema
as tranças da irac ema

o trem pra saquar ema

o whisky no gogó da ema
o canto enduetado da siri ema

a clara, tampouco a g ema

a pomada pra ecz ema
pra h ema toma ou ed ema

ema ema ema emador, quero ver depressa...

o incenso azul da alfaz ema
amalgamado na fumaça do cr ema tório

se o tal rômulo realmente r ema

se o fígado do ad ema r
requer epocler ou epar ema

se minhoca é macho ou f ema

definir o esqu ema
escolher o estratag ema

se - ordem e progresso - é l ema

entender o teor ema
sobreviver ao sist ema

se bell deu aquele telefon ema

se me repito em fon ema
estereótipo ou embl ema

se tudo é questão de s emâ ntica

se engordou a emma thompson
ou se i ema njá ema greceu

se eutanásia é razão extr ema

pra um roteiro de cin ema
talvez, quem sabe, um po ema

não; não discuto nenhum t ema

só me incomoda um dil ema
um único probl ema:

o sequestro do tr ema


RAUL POUGH

;




photo by:

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Não! Você não chegaria a essa conclusão sozinha...


Rompe-se
o rosário da certeza
e as contas,
espalhadas pelo assoalho,
resvalam,
no silêncio interrompido.

Quem diria
que seria você
a assassinar a Beleza,
Nick Cave de saias,
[usando]
palavras como alfaias,
de parco valor embutido.


RICARDO POZZO

Beijo no asfalto


pelo sim,
pelo não,
foi atropelo.

quem, de nós,
ultrapassou
sinal vermelho?

qual dos dois,
está estendido
no chão?


VALÉRIA TARELHO

poemadia.blogspot.com

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Day easy

para deisi perin        


o sol
ainda está a meio-parto
quando o dia surge fácil

rapel...

é quando esta pagu
desconfina-se entre paredes

faz pouco caso dos deuses
flerta com demônios inquietos

desliza em versos de cordel
desafiando as cordas; ouvindo

ravel...


RAUL POUGH

Ejaculação precoce


os abruptos
também amam


RAUL POUGH

Colírio: Susan Sarandon



Friends...


- E aí?
- E aí, o que?
- Como é que foi?
- Foi como sempre, porra!
- Sempre? Mas não é só uma vez ao anus?
- Cê tá de sacanagem!
- Desculpa aí, foi mal... uma vez ao ano.
- Como sempre: o cara enfiou um dedo lá,
nem quero saber qual...
- E tava tudo bem?
- E depois ele olhou o resultado do meu PSA.
- E aí?
- Disse que 2,16 pra minha faixa etária está ótimo.
Podia ir até 3,50.
- Marcou o retorno?
- Que retorno, seu bosta? Tá de sacanagem outra vez?
- Pô, desculpa aí, foi mal...
- Vai tomar no cu, seu viadinho!
- Taí! Se tem um troço que não tenho, é inveja... (fui)
- Péra aí, volta aqui seu babaca!

Sexo poderia ser sujo se eu não soubesse escrever poesia (ou começo e fim)


A tua porra no meu corpo.
Sou uma puta suja.
Mas, uma puta tua.


LETICIA FONTANELLA

leticiafontanella.blogspot.com

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Bonito


Se o que soa de ti me agrada aos ouvidos
Digo: - és Bonito além de o rude viver
Se o eco em mim te faz arder
Acredite Bonito, me dói saber - sou adido,

Meus conflitos vivem de expedientes:
Um dia sóbrios a galgar vertigens
Noutros - estridente ócio maldito.

O ranger de dentes não é pré-requisito.

Ouça – Bonito!
O que nunca pude dizer:

A vida voa
O desejo vil
A resignação vã,

E o que resta entre nós e outras manhãs
É letivo, Te faço saber.

Alterações ortográficas vãs
Verbo no infinitivo.
Ser.


MARIA JÚLIA PONTES

ciadapoesia.blogspot.com

sábado, 17 de outubro de 2009

Patricinha de bordel


benetton, eram os óculos
o batom, era givenchy
valisère, era o sutiã
a camiseta, hering
triumph, era a calcinha
a calça, era wrangler
de artesanato barato, o cinto
as meias, eram still

e era fila, o tênis da puta


RAUL POUGH

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Literatura celular




www.mostrasescdeartes.com.br

A programação da Mostra Sesc de Artes de 2008 tinha como um de seus objetivos levar literatura para os lugares mais diferentes. Os microcontos e nanocontos de diversos escritores disparados via SMS do projeto Literatura Celular, por exemplo, circularam desde a abertura da Mostra, no dia 8/10, entre os celulares de quem havia se cadastrado no site e de quem já havia recebido mensagens repassadas por amigos. Do que circulou na época, alguns dos SMS que resultaram nestes contos mínimos são reproduzidos a seguir:

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TORPOR

Fedor. Passo. Não! Arfa avança tateia. Morto pesa pacas.
O bodum tonteia. “”Pô!”" Passo. Queda. “”Não!”" Já era.


A. Guzik
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Periferia, becos, vielas,
E só vejo… poesia.


Alessandro Buzo
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AMÉLIA

Jantar mudo de chamadas perdidas: eu, mulher-de-verdade,
destupro meu destino na entranha do peixe. Me calo.


Ana Rüsche
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As nuvens de chuva se afastaram. Ele foi à janela.
O cão ainda agonizava entre o corpo dela e o muro.


André de Leones
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Amor deles água de barrela:
ele gostava do Rimbaud; ela do Rambo.


Evandro Affonso Ferreira
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VENTRÍLOCO

— Quem tá falando, eu ou você?


Fernanda Siqueira
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SEREIA

Chegou na cela.
— Por que olha para esse copo d’água?
O velho disse:
— 15 anos e não sei. Chega agora e quer saber?


Ferréz
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kd vc agora?
virei oceano sem adeus nem volta
tdu foi amor :,(
:,(
não era onda


Flávio Viegas Amoreira
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50 ANOS

De hoje em diante só faço o que quero.
“É cedo pra isso”, disse minha mãe,
que nunca se deu ao luxo.


Ivana Arruda Leite
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PARTO

No lixão, a mendiga força o bebê pra fora:
Se tu entala, te faço voltar pra barriga, fio-da-puta.


João Silvério Trevisan
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METÁFORA

Aquele catavento é um homem.


Lirinha
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8 MM

Estourou o céu da boca; Ele escutou a sua prece.


Luciana Miranda Pennah
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segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Detalhes


São o que as pessoas expõem de si. Ou o que conseguimos ver delas.

Alguns nos inspiram quadros cubistas.
Outros, quebra-cabeças.
Outros, colchas de retalhos.
Num pintar, montar, construir ad infinitum. Sempre por fazer.

E outros, nunca nos damos o trabalho de unir.
Ficam melhores assim. Mais belos.


MAÍLA DIAMANTE

eolika.blogspot.com

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Onomatopéia de um banho


Treeec. Tusc tusc tusc.
Plim. Plim plim plim plim plim plim plim plim.
La la La.
Wash wash wash la la la La.
Toc toc toc toc la la la toc toc toc plim. Toc.
Plim plim plim plim.
Tusc tusc tusc treeec.
Plim.


LETICIA FONTANELLA

(*) Obviamente, de alguém que gosta de cantar sob o chuveiro... será ela?

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Sertanejão... pra quem gosta




Nóis enverga mais não quebra, nóis chacoalha e não derrama
Nóis balança mais não cai, nóis é brabo e bom de cama
De bobo nóis não tem nada, só a cara de coitado
Nóis se finge de leitão, pra poder mamar deitado

Osso duro de roer, somos nóis aqui do mato
Tomando cachaça pura, comendo ovo de pato
Capinando a nossa roça, contando boi na invernada
Nóis não tem dor de cabeça, não se encomoda com nada

De noite nóis vai pra festa e arrepia no bailão
Mulher bonita e gostosa, nóis ganha é de montão
Onde tem moda de viola e catira nóis tá no meio
Nóis não liga pra dinheiro, nóis já tá com saco cheio


TIÃO PEREIRA / AFONSO MENDES

sábado, 3 de outubro de 2009

Chuva e não (II)


Há dias em que chove poesia.
Dias em que pinga.
Dias em que não.

Cautela para os primeiros.
Atenção para os segundos.
Dos últimos, o áspero
aprendizado do silêncio,
a dura ração da recusa.

Alheios à chuva e poesia,
os dias prosseguirão.


SIDNEY WANDERLEY

pirateado do blog: enredosetramas.blogspot.com

sexta-feira, 2 de outubro de 2009