O jornal Folha de S. Paulo, de 15/4/2007, publicou no caderno Ilustrada, um conto do grande poeta e mestre Ferreira Gullar, intitulado "Cartas Anônimas", do qual extraí um pedacinho, abaixo reproduzido:
"Foi assim que, com espanto, (Deodato) leu a carta que encontrou, sob a porta da rua, endereçada a ele. Uma carta anônima que, com letras recortadas de jornal, dizia o seguinte: "Sua mulher o está traindo". Dobrou o envelope e meteu-o no bolso, sem saber o que pensar. À mesa do café, Geninha percebeu alguma coisa estranha nele e perguntou se havia acontecido alguma coisa. Ele respondeu que não, não havia acontecido nada e, mal terminou o café, saiu para a rua."
Vejam só o vacilo, a pisada de bola do mestre: a expressão alguma coisa aparece duas vezes numa mesma frase, tornando o texto, no mínimo, deselegante.
Veja como a frase ficaria, assim escrita: "À mesa do café, Geninha percebeu algo estranho nele e perguntou se havia acontecido alguma coisa". Minimamente elegante, não é?
Isto, sem aprofundar a análise acerca da presença também suspeita e de elegância duvidosa, da palavra café, que aparece numa frase e, teimosamente, reaparece na seguinte.
Fica, então, a pergunta: um gênio, um mestre, tem o direito de errar? Tem o direito de decepcionar?
Lembro de um fato ocorrido comigo em 1964. Contava, então, com 13 anos de idade e morava em Brotas, interior de São Paulo. Num domingo ensolarado, meu pai me levou a Araraquara, para assistir a uma partida de futebol entre a Ferroviária local e o famoso Santos, com seus inúmeros astros, Pelé o mais brilhante deles. Papai desejava, certamente, presentear-me com a venturosa chance de ver um gênio da bola, talvez o maior, em ação.
Pois bem, o confronto no Estádio da Fonte Luminosa terminou com o placar de 0x0 e eu vi, com estes olhos que o serviço de transplantes há de comer, o genial Pelé, displicentemente, chutar um pênalti pra fora. É claro que voltei para casa decepcionado. Nem o glorioso craque me encantou, nem o time santista me empolgou. Tanto é, que meses depois tornei-me corinthiano e elegi meu primeiro ídolo, o atacante Flávio.
Fica, de novo, a pergunta: um gênio, um mestre, tem o direito de errar? Tem o direito de decepcionar?
Fico a imaginar-me mostrando este conto à minha filha e ouvi-la dizer: mas, pai, não é este o grande Ferreira Gullar, premiadíssimo, indicado até para o Prêmio Nobel? Ele comete uns errinhos tão bobos, não é? E vê-la, meses depois, ardorosa fã de Paulo Leminski.
A falha de mestre Gullar equivale, no futebol, a errar um passe ou a perder um pênalti? Alguém dirá que, sob certas circunstâncias, errar um passe pode ser até mais grave do que perder um pênalti. Outrem insistirá contrariamente. O que importa é que, circunstâncias essas poderão definir, para a vida toda, a monstruosa diferença entre tornar-se um santista convicto ou um corinthiano apaixonado.
RAUL POUGH
2 comentários:
vai ver o gullar fez de propósito e o pelé também. quem sabe? o_õ?
uma dica: você não pode se permitir desiludir ou deixar quebrar o pedestal onde você botou seu artista preferido.
o esquema é esperar seus ídolos ficarem bem mortos e começar a ler só textos selecionados ou antologias revisadas... :D
hum...exagero. Crônica é produto perecível. Rubem Braga recebia dezenas de críticas de gramáticos napoleônicos que protestavam contra sua grafia errada. O tempo consagrou Braga e esqueceu os Napoleões Mendes de Almeida.
Gullar já está consagrado pelo "Poema Sujo". Sim, o mestre pode errar. Como dizia Leminski, não erro uma ou duas vezes, erro logo mil. E o Cazuza : "erra bastante, Frejat, erra bastante".
O crítico não deve observar apenas um aspecto, mas o conjunto. O mau escritor erra no conjunto. Deslize são normais. O problema aqui, tb, é a idolatria.
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